segunda-feira, 8 de outubro de 2007

História dos Mártires do RN!




Tribuna do Norte on line - (Especiais)


O C e n á r i o H i s t ó r i c o

Guerras e negócios:
Invasão do Nordeste brasileiro pelos holandeses teve motivações políticas e objetivos econômicos.
O pano de fundo histórico para os massacres dos colonos portugueses na capitania do Rio Grande, em 1645, foi a ocupação holandesa de boa parte do Nordeste brasileiro. A invasão, iniciada em 1624 com a ocupação de Salvador, na Bahia, teve motivações políticas e objetivos econômicos. O expansionismo holandês no século XV fazia parte da redistribuição de poder entre as nações da Europa. Impulsionada pela atividade de banqueiros e comerciantes, pela filosofia empreendedora do Iluminismo e pela guerra de independência contra a dinastia dos Habsburgos, que ocupava o torno da Espanha, a Holanda disputava um lugar entre as superpotências da época.
Portugal e Espanha, unidas sob um mesmo trono desde 1580, eram donas das maiores porções do Novo Mundo e do comércio entre a Europa, África e Ásia, mas já mostravam sinais de decadência após o esforço desprendido para as grandes navegações das descobertas nos séculos XIII e XIV.
Endinheirada, a sociedade holandesa da época desenvolvia novos estilos nas artes, inovava nas técnicas e pesquisava nas ciências. Adeptos das religiões protestantes de Lutero e Calvino, nascidas do movimento da Reforma, os holandeses não discriminavam os judeus tanto quanto os países católicos. Com isso, receberam refugiados, capitais financeiros e conhecimentos com os quais subsidiaram as operações de conquistas além-mar.
Atacar as colônias espanholas no além-mar constituía um objetivo estratégico. Mas, também havia a perspectiva de lucros. Mercadores e banqueiros holandeses criaram em 1621 a Companhia das Índias Ocidentais, uma empresa privada que recebeu do governo da Holanda o monopólio do comércio, navegação e conquista em toda a área entre a Terra Nova (atual norte dos EUA) e o Estreito de Magalhães (atual sul da Argentina), de um lado do Atlântico, e toda a costa oeste africana.
O Nordeste brasileiro foi escolhido como alvo porque, uma vez conquistado, ofereceria bases a partir das quais a frota holandesa poderia prejudicar as rotas comerciais da cana de açúcar, abastecido pelo Brasil, e de prata, suprido pelas minas do Peru. As contas feitas pela companhia, para a invasão do nordeste brasileiro, mostravam que a campanha custaria 2,5 milhões de flor ns. Esperava-se que a nova colônia renderia, por ano, oito milhões de flori ns.
O negócio da Companhia das Índias
As primeiras incursões holandesas à costa brasileira datam de 1615, quando uma expedição comandada por Joris van Spilbergen foi aprisionada no Rio de Janeiro. Em abril de 1624, uma frota de 26 navios bem armados e equipados com 3.300 homens pagos pela Companhia das Índias Ocidentais, atacou Salvador. Em maio, as tropas desembarcaram e tomaram a cidade, mas não conseguiram penetrar no interior. Portugueses e brasileiros fizeram movimentos de guerrilha, resistiram ao invasor e um ano depois, com o reforço de uma esquadra enviada por Portugal e Espanha, reconquistaram Salvador.
Os holandeses compensaram a derrota na Bahia conquistando Recife e Olinda, em fevereiro de 1630. A expedição tinha 67 navios e sete mil soldados. A resistência luso-brasileira, concentrada em arraias fundados no interior e sempre atuando com táticas de guerrilhas, se estendeu por cinco anos. Usando Pernambuco como base, os holandeses passaram a devastar engenhos e lavouras, ameaçando e aterrorizando a população para que não ajudassem os resistentes.
Ações militares maiores comandadas pelo conde João Maurício de Nassau-Siegen, entre 1637 e 1641, consolidaram o domínio holandês. As capitanias e as fortalezas de Itamaracá, Paraíba, Sergipe, Rio Grande e o Maranhão foram ocupadas. Portugal, que havia se separado do trono da Espanha, negociou uma trégua com a Holanda e os próximos anos foram de relativa paz.
Diferentes em tudo dos portugueses, os holandeses chegaram ao Brasil sem a intenção de se fixarem na terra. Poucos trouxeram ás famílias. O objetivo era enriquecer rápido explorando os recursos naturais do país ocupado. Mas, apesar disso, contribuíram para o avanço social, econômico, cultural e científico.
O período de maior efervescência cultural e artística foi o governo do conde João Maurício de Nassau-Siegen (1637-1644), quando artistas europeus visitaram e pintaram o nordeste brasileiro, ergueram-se monumentos, pontes, jardins e prédios de nova arquitetura, diversificou-se as culturas agrícolas nos engenhos e iniciou-se estudos científicos na área da astronomia, topografia, meteorologia e do uso que os índios faziam de plantas medicinais.
Na capitania do Rio Grande, no entanto, não se viu nada disso. Aos holandeses interessava das terras potiguares apenas as lavouras de mandioca para o fabrico da farinha e os rebanhos de gado, considerados os mais numerosos da região. Fontes da época e historiadores, citados por Luis da Câmara Cascudo, falam em 20 mil cabeças. Talvez fossem menos, mas é indiscutível que Olinda, Recife e Itamaracá - núcleos urbanos dos holandeses - dependiam desse rebanho para o abastecimento de carne e de força animal para trabalho nos engenhos que estavam sendo reativados.

A I n v a s ã o d o R i o G r a n d e
Eles vieram atrás do gado:
Conquistar Rio Grande era vital para suprir Olinda e Recife de carne, peixe seco e farinha de mandioca.
No Rio Grande do Norte, em junho de 1625, uma esquadra holandesa que tentou sem sucesso socorrer o governo flamengo na Bahia, aportou na Baía da Traição. Eram 34 navios bem armados, comandados pelo almirante Boundewijn Hendrikszoon. Uma patrulha desceu à terra e visitou o engenho Cunháu. Recolheu limões, entre os índios, para tratar do escorbuto que atingia os marinheiros holandeses e mandou para o conselho da Companhia das Índias Ocidentais, antes de navegar para Porto Rico (Caribe) notícias de que nas terras do Rio Grande havia muito gado e muita lavoura de cana-de-açúcar e mandioca.
Cinco anos depois, já conquistado o Recife e Olinda, um holandês sozinho, Adriano Verdonck, percorreu todo o litoral entre Cunhaú e Natal, tomando anotações sobre o povoamento, engenhos, lavouras e o poder de defesa do Forte dos Reis Magos. Em dezembro de 1631, teve início a campanha para conquistar a capitania do Rio Grande. Os holandeses contavam com a ajuda dos índios janduís, inimigos históricos dos portugueses. Uma tropa, sob o comando de Albert Smient e Joost Closter desembarcou em Genipabu, sem atacar o Forte dos Reis Magos. Encontrou índios, aprisionados por um português que trazia documentos do Ceará e foi morto. As informações eram importantes e a expedição voltou a Pernambuco.
Somente em dezembro de 1933 é que veio a expedição definitiva. Eram 12 navios, 808 soldados que desembarcaram em Ponta Negra. O comando estava com almirante Jean Cornelissen Lichthard do tenente-coronel Baltasar Bima. O combate começa no dia 08 e se estende até o dia 12, quando a guarnição do forte, a revelia do capitão-mor Pero Mendes de Gouveia, ferido no combate, propôs a rendição.
Vencedores, os holandeses rebatizaram o forte como Castelo Keulen e Natal de Nova Amsterdã. Os poucos habitantes da cidade haviam se refugiado no engenho Potengi (Câmara Cascudo identifica esse engenho como sendo o do Ferreiro Torto, mas outros historiadores têm dúvidas quanto a isso). O engenho pertencia a Francisco Rodrigues Coelho. Seis dias após o desembarque, soldados holandeses e índios janduís marcharam para o engenho. No caminho encontraram alguma resistência. No engenho, em represália e para desestimular novas resistências diante das notícias que davam conta de que haveria um contra-ataque aos invasores, mataram Francisco Coelho, a mulher dele, os seis filhos e os refugiados de Natal. Eram cerca de 60 pessoas.
A tática de terra arrasada e do terror
Nenhum historiador discorda quanto aos motivos que trouxeram os holandeses para o Rio Grande do Norte. Com a perda do controle sobre a região do Vale do Rio São Francisco, na Bahia, era vital garantir outros centros de abastecimento para Olinda, Recife e Itamaracá, os grandes centros urbanos e produtores de açúcar do "Brasil Holandês".
"Pela gabaria assolava-se tudo (...) O holandês resistiu matando, incendiando, entregando a população cristã aos janduís, no propósito único de conservar a carne para a consumação no Recife, sede da resistência neerlandesa", descreve Cascudo no livro História da Cidade do Natal (pág. 66, ed. 1999). Joan Nieuhof, escrevendo em 1682 sobre a viagem que fez ao Brasil nos anos em que o domínio holandês já enfrentava o levante que levou à Restauração de Pernambuco (após 1645) assegura que "o Rio Grande era, portanto, a única região de onde se recebia, quantidades ponderáveis de farinha e gado que minoravam em parte a escassez de gêneros reinante no Recife".
A dominação sobre a região do Potengi, isolada dos focos de resistência luso-brasileira, era feita mais através dos índios janduís, aliados de primeira hora. No Castelo de Keulen, as tropas holandesas estavam resumidas a uma guarnição de algumas dezenas de soldados. Os janduís eram da raça cariri e dominavam desde antes do descobrimento os sertões norte-riograndenses. Nunca aceitaram a presença dos portugueses, ao contrário dos potiguares, os tupis que habitavam o litoral e que depois de uma breve resistência haviam se aliados aos portugueses, depois trocados pelos holandeses.
O chefe Janduís veio a Natal, em 1638, encontrar-se com Maurício de Nassau. No brasão d´armas que Nassau deu a Nova Amsterdã (Natal) havia uma ema, homenagem aos janduís, tropa de choque e guarda pretoriana dos interesses holandeses no interior da capitania.
O período de maior efervescência cultural e artística foi o governo do conde João Maurício de Nassau-Siegen (1637-1644), quando artistas europeus visitaram e pintaram o nordeste brasileiro, ergueram-se monumentos, pontes, jardins e prédios de nova arquitetura, diversificou-se as culturas agrícolas nos engenhos e iniciou-se estudos científicos na área da astronomia, topografia, meteorologia e do uso que os índios faziam de plantas medicinais.
Na capitania do Rio Grande, no entanto, não se viu nada disso. Aos holandeses interessava das terras potiguares apenas as lavouras de mandioca para o fabrico da farinha e os rebanhos de gado, considerados os mais numerosos da região. Fontes da época e historiadores, citados por Luis da Câmara Cascudo, falam em 20 mil cabeças. Talvez fossem menos, mas é indiscutível que Olinda, Recife e Itamaracá - núcleos urbanos dos holandeses - dependiam desse rebanho para o abastecimento de carne e de força animal para trabalho nos engenhos que estavam sendo reativados.

O r i g e m d o s M a s s a c r e s
Crise comercial e revolta:
Em 1645 o clima no Brasil holandês era tenso. Portugueses e brasileiros iniciaram o levante que expulsou os holandeses.

Os episódios dos massacres de Cunhaú e Uruaçu ocorrem em meio ao levante de colonos portugueses e brasileiros contra o domínio holandês. A insurreição teve bases econômicas. Após um período de relativa paz e prosperidade em Olinda e Recife, os preços do açúcar começam a cair no mercado de Amsterdã. Senhores de engenho e lavradores da cana de açúcar tinham contraído empréstimos junto a Companhia das Índias Ocidentais e se viram sem ter como pagar os débitos Comerciante se acionistas executaram as hipotecas, terras e engenhos foram perdidos, boa parte do capital existente na colônia voltou para a Holanda, o movimento dos navios caiu.
Aos efeitos da crise comercial, que começou em 1638 e agravou-se em 1642, juntaram-se fatores que, mesmo já existindo antes, tinham ficado mais ou menos equilibrados durante o clima de paz e tranquilidade do período anterior: a incompatibilidade entre o catolicismo luso-brasileiro e o calvinismo holandês, a contradição cultural das tradições rurais da colônia e o urbanismo dos invasores, o encorajamento com a Restauração do trono em Portugal(1640) e a reconquista do Maranhão (1643).
O fato é que em 1645 a revolta, liderada por André Vidal de Negreiros, João Fernandes Vieira e outros donos de engenhos e de propriedades confiscadas. O governador da Bahia, Antonio Teles da Silva, prometeu tropas lusas, mas o grosso do exército rebelde foi formado mesmo pelos contingentes de negros sob o comando de Henrique Dias e de índios, liderados por Antonio Felipe Camarão. A luta começou em 13 de junho de 1645, com João Fernandes Vieira se rebelando no Recife, depois de ter sido delatado às autoridades holandesas. Foi de inicio uma luta de guerrilhas, com luso-brasileiros e holandeses empregando as mesmas táticas dos anos da invasão: terra arrasada e terrorismo junto à população civil.
Chacina em Cunhaú fez parte do terror.
No cenário da luta de guerrilhas, luso-brasileiros e holandeses mal empregaram tropas regulares. As escaramuças e os enfrentamentos mais crues e arriscados, em meio aos tabuleiros e matas, se davam entre patrulhas de índios aliados e negros voluntários.
É nestas circunstâncias que surge a figura de Jacob Rabbi, alemão à serviço do governo holandês. Fluente na língua dos índios tapuias, amigo pessoal do chefe Janduís, casada com a índia Domingas, Rabbi chegou ao Brasil com Maurício de Nassau e foi nomeado como interprete. Na verdade, atuou como "oficial de ligação" entre os interesses da Companhia das Índias Ocidentais e o chefe Janduís, sem descuidar dos seus próprios objetivos: poder e riquezas. Com a necessidade de combater o levante, assumiu a chefia de grupos mistos de índios e aventureiros, bem no estilo dos paramilitares que se vê hoje nas guerras modernas, atacando arraias luso-brasileiros, saqueando engenhos, queimando lavouras e aterrorizando a população suspeita de apoiar os revoltosos de Vieira, Henrique Dias e Felipe Camarão.
Percorrendo a região canavieira entre Recife e Natal, Rabbi e um grupo de índios janduís e potiguares, além de soldados holandeses, chegaram ao engenho Cunhaú em 15 de julho de 1645. Se apresentou como emissário do Supremo Conselho Holandês de Recife e convocou a população para uma reunião, após a missa do dia seguinte, um domingo, na capela de Nossa Senhora das Candeias.
O domingo amanheceu chuvoso e nem todos os moradores compareceram à missa. Os historiadores estimam em 69 pessoas presentes no lugar. Durante a celebração, após a elevação da hóstia, os soldados holandeses trancaram todas as portas da igreja. A um sinal de Rabbi, os índios invadiram o local e chacinaram os colonos.
Relatos posteriores, alguns deles de emissários do governo holandês que investigaram o episódio, descrevem cenas de violência, atrocidades e certo requinte de crueldade contra os fiéis. Desarmados, os colonos não tinham como resistir e se resignaram à morte. Atendendo a exortação do padre André de Soveral, que celebrava a missa, muito foram executados em meio as orações. O próprio padre foi morto a punhaladas. Antes de ser morto, ele ainda disse aos indígenas para não tocar nas pessoas ou nas imagens e objetos do altar, porque seriam cortadas as mãos e as partes do corpo de quem o fizessem. Com esta ameaça, os tapuias recuaram, mas os potiguares - menos supersticiosos e mais acostumados a religião dos portugueses - não se intimidaram e prosseguiram com o ataque.
Algumas pessoas se refugiaram na casa do engenho, mas tiveram um fim semelhante ao das que estavam na capela. Os flamengos e índios invadiram a casa. Houve certa resistência, três colonos conseguiram escapar pelo telhado, mas a superioridade numérica dos índios e dos holandeses acabou prevalecendo. Depois da chacina, o engenho foi saqueado.

D e s t r u i ç ã o e R e p r e s á l i a s
Eliminando a resistência:
Em Uruaçu, massacre eliminou os líderes locais para evitar que levante chegasse ao Rio Grande do Norte.

REPRESENTAÇÃO - Encenação em Cunhaú mostra como foi o martírio de fiéis.
A notícia do massacre em Cunhaú espalhou-se rápido entre os colonos luso-brasileiros do Rio Grande. Em Natal, mesmo suspeitando da conivência do governo holandês com o crime, alguns moradores influentes, liderados pelo padre Ambrósio Francisco Ferro, pediram abrigo no Castelo de Keulen. A princípio foram recebidos como hóspedes.
Outros, que não foram ao castelo, ergueram um paliçada para for ticar a localidade conhecida como Potengi, distante cerca de três léguas (18 km) do Castelo de Keulen, às margens do rio Jundiaí. O número de moradores refugiados na paliçada passava é incerto. Cronistas portugueses falam em "70 homens". Documentos holandeses citam 232 pessoas.
O terror aumentava a medida que chegavam notícias da marcha dos tapuias e potiguares, junto com o grupo de Jacob Rabbí, por vários localidades entre o Rio Grande e Paraíba. Os colonos juntaram armas e mantimentos para resistirem a um possível ataque e cerco dos índios e holandeses.
Alguns cronistas atribuem à vontade pessoal de Jacob Rabbí a ordem de ataque ao arraia do Potengi. A lógica da guerra mostra que foi o próprio conselho holandês quem deve ter determinado o ataque que acabou no segundo massacre de colonos luso-brasileiros no Rio Grande. Uma paliçada, com homens em armas e prontos para a resistência, não deve ter parecido nada amistoso aos holandeses que já começavam a perder terreno para revoltosos, com táticas semelhantes, em Pernambuco.
Pesquisando nos arquivos de Haia para a causa da postulação dos mártires, monsenhor Francisco de Assis, encontrou documentos que provam a conivência do governo holandês. A reconstituição dos fatos, com base em documentos portugueses e flamengos, mostram que o cerco a paliçada do Potengi durou 16 dias. Foi iniciada em setembro pelo grupo de Jacob Rabbí e, depois, contou com reforços enviados pelo Castelo de Keulen, incluindo duas peças de artilharia. O bombardeio forçou a rendição dos luso-brasileiros.
Ocupada a paliçada do Potengi, os holandeses levaram cinco reféns para o Castelo de Keulen. Os demais colonos ficaram confinados a paliçada, mas já não tinham muitas esperanças sobre o que poderia acontecer. Diogo Lopes Santiago (Historia da Guerra de Pernambuco) e Manuel Calado do Salvador (O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade) contam que o clima entre os refugiados era de "intensa religiosidade", fazendo-se penitências e procissões.
No Castelo de Keulen, aguardava-se a visita de um emissário do Alto e Secreto Conselho do Recife, Adriaen van Bullestrate, que deveria inspecionar o que acontecia no Rio Grande. No dia 2 de outubro chegou uma lancha ao castelo, com uma mensagem do conselho. Os historiadores consideram que era a ordem para executar os principais líderes dos colonos, desestimulando a revolta em terras do Rio Grande.
Não há comprovação dessa ordem, em outros registros históricos, mas o fato é que no dia seguinte - 03 de outubro - os 12 colonos que estavam no castelo são levados em botes para o porto de Uruaçu e executados. À morte deles, segue-se a chacina dos que estavam refugiados em Potengi, depois de terem sido retirados da paliçada e levados para o mesmo porto.

M á r t i r e s e A l g o z
Perfis da fé e do ódio:
Dados biográficos são imprecisos pela falta de registros sobre a população do século XVII nas colônias.
Os nomes das vítimas de Cunhaú e Uruaçu constam de várias crônicas portuguesas do século XVII sobre a guerra contra os holandeses em Pernambuco. As três principais, nas quais o monsenhor Francisco de Assis Pereira baseou-se para elaborar a lista dos 30 mártires propostos para a beatificação, são as crônicas de Frei Manuel Calado do Salvador (in O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade, de 1648), Diogo Lopes Santiago (in História da Guerra de Pernambuco) e Frei Rafael de Jesus (in Castrioto Lusitano, de 1679).
Abaixo, relação completa dos mártires, com detalhes biográficos de alguns.

Biografias:
Padre André de Soveral:
O sacerdote é um dos dois brasileiros incluídos na lista para a beatificação. Nasceu em São Vicente, litoral paulista, em 1572. Como missionário jesuíta catequizou os índios no Nordeste do Brasil. Depois, já no Clero diocesano, foi pároco de Cunhaú, onde foi morto durante a missa com mais 69 fiéis.

Domingos de Carvalho:
Além do padre André de Soveral, é o único dos fiéis mortos em Cunháu, identificado com segurança. Não há informações sobre seus afazeres, mas no corpo foram encontradas moedas de ouro, sinal de que devia ser algum mercado próspero. Há dúvidas se foi morto na capela ou na casa do engenho.

Padre Ambrósio Francisco Ferro:
Português dos Açores, foi nomeado vigário do Rio Grande em 1636. Refugiou-se na Fortaleza dos Reis Magos (Castelo de Keulen), após o massacre de Cunháu, junto com mais cinco principais da cidade. Foi levado para a morte em Uruaçu.

Antônio Vilela Cid:
Fidalgo, nascido em Castela, Espanha, veio para o Rio Grande em 1613 para assumir por ordens do rei Felipe II o cargo de capitão-mor. Não se sabe porque não exerceu a função, mas em 1620 era juiz ordinário em Natal. Casou com Dona Inês Duarte, irmão do padre Ambrósio Francisco Ferro. Acusado pelo chefe Janduís de ter sido cúmplice na morte de um holandês, na capitania do Ceará, foi preso no Castelo de Keulen por suspeita de conspiração.

Estevão Machado de Miranda:
Um dos principais da capitania do Rio Grande, casado com dona Bárbara, filha de Antonio Vilela Cid. Em 1643 fazia parte da Câmara dos Escabinos, espécie de câmara municipal junto ao governo holandês. Esteve na paliçada do Potengi e foi um dos cinco reféns presos na fortaleza. Junto com ele foram sacrificadas, em Uruaçu, duas filhas pequenas.

Antonio Vilela, o Moço:
Filho de Antonio Vilela Cid. Retirado da paliçada do Potengi e morto juntamente com uma filha pequena.

Mateus Moreira:
Estava na paliçada do Potengi. Teve o coração arrancado pelas costas e morreu exclamando "Louvado seja o Santíssimo Sacramento".

Antônio Barracho:
Também retirado da paliçada do Potengi. Teve o corpo amarrado a uma árvore. Arrancaram-lhe a língua e o castraram, colocando na boca os órgãos genitais. Foi açoitado e queimado com ferros em brasa.

Manuel Rodrigues de Moura:
Resistente da paliçada do Potengi. Foi levado para o sacrifício com a mulher, que os cronistas não identificam o nome. Relatam apenas que, depois de morto o marido, ela teve os pés e as mãos amputados, sobrevivendo ainda por três dias.

João Lostau Navarro:
Nascido em Navarro, a época incorporado à França de Henrique IV. Um dos mais antigos moradores da capitania do Rio Grande. Tinha uma "casa forte" na praia de Tabatinga, invadida por Jacob Rabbi após o ataque em Cunhaú. João Lostau resistiu e foi preso no Castelo de Keulen. Era sogro do tenente-coronel Joris Garstman, comandante holandês que governou o Rio Grande de 1633 a 1637.

João Martins:
Jovem que liderava um grupo de sete companheiros. Pariticiparam da resistência na paliçada do Potengi. Em Uruaçu foi convidado a passar-se para o lado dos holandeses. Como recusaram, foram mortos. João Martins foi o último a ser executado, após ter sido obrigado a presenciar a morte dos amigos.

Relação completa dos mártires mortos em Cunháu:
- Padre André de Soveral
- Domingos de Carvalho
Mortos em Uruaçu:
- Padre Ambrósio Francisco Ferro
- Antônio Vilela, o Moço
- José do Porto
- Francisco de Bastos
- Diogo Pereira
- João Lostau Navarro
- Antônio Vilela Cid
- Estevão Machado de Miranda
- Vicente de Souza Pereira
- Francisco Mendes Pereira
- João da Silveira
- Simão Correia
- Antônio Barracho
- Mateus Moreira - João Martins
- Uma filha de Manuel Rodrigues de Moura
- A esposa de Manuel Rodrigues de Moura
-Antônio Vilela, o Moço
- Uma filha de Francisco Dias, o Moço
- Primeiro Jovem companheiro de João Martins
- Segundo Jovem companheiro de João Martins
- Terceiro Jovem companheiro de João Martins
- Quarto Jovem companheiro de João Martins
- Quinto Jovem companheiro de João Martins
- Sexto Jovem companheiro de João Martins
- Sétimo Jovem companheiro de João Martins
- Primeira filha de Estevão Machado de Miranda
- Segunda filha de Estevão Machado de Miranda

Jacob Rabbí teve carreira marcada pela crueldade.
Na repressão desencadeada pelos holandeses na capitania do Rio Grande, após o início do levante em Pernambuco, o alvo mais frequente foi a população civil. Os agentes mais atuantes dessa repressão foram os índios - tapuias e potiguares - e o alemão Jacob Rabbí.
A figura de Jacob Rabbi inspirou diversas versões entre os cronistas e historiadores, a maioria delas demoníacas. Natural do condado de condado de Waldeck, emigrou para a Holanda e foi contratado pela Companhia das Índias Ocidentais. Os historiadores o consideravam judeu, mas essa é uma versão que vem sendo discutida e alguns autores já descartam essa possibilidade.
Rabbi chegou ao Brasil junto com o conde João Maurício de Nassau-Siegen, em 23 de janeiro de 1637, desembarcando no Recife. Em território brasileiro, a missão do alemão era de intérprete junto aos índios aliados, no meio dos quais passou a viver, adotando alguns dos seus costumes. Casou com uma índica janduís, Domingas, e mostrou-se um observador culto. Seus estudos etnográfico sobre os índios não eram destituídos de valor e foi citado por autores posteriores, apesar dos manuscritos terem se perdido. Sintetizou suas informações sobre a vida indígena na obra " De Tapuryarum moribus et consuetubinibus, e Relatione Iacobbi Rabbi, Qui aliquot annos inter illos vixit".
No comando das tropas de janduís e potiguares, além de aventureiros que viam na guerra uma oportunidade de enriquecimento, Rabbí foi responsável por massacres e saques a engenhos entre nas capitanias do Rio Grande, Paraíba e Pernambuco. Entre o massacre de Cunhaú, em 16 de julho de 1645, e o de Uruaçu, em 3 de outubro do mesmo ano, o aventureiro desceu em direção a Goiana (Pernambuco), saqueando tudo pelo caminho. Em meados de agosto, as margens do rio Goiana, foi detido e rechaçado por tropas luso-brasileiras, tomando então a decisão de voltar ao Rio Grande, onde atacou, em setembro, a paliçada do Potengi.
Por conta da morte de João Lostau Navarro, em Uruaçu, Rabbi foi morto em emboscada na noite de 4 de abril de 1646 – menos de um ano depois do massacre - quando sai de um jantar na casa de um certo Dirck Maeller, as margens do Potengi. As investigações apontaram como mandante do crime o tenente-coronel Joris Garstman, genro de João Lostau. Garstman chegou a ser punido e enviado de volta à Holanda, mas acabou anistiado e voltou ao Brasil, permanecendo até 1654.

O s Í n d i o s e o Go v e r n o H o l a n d ê s
A atração da igualdade:
Holandeses deram tratamento diferenciado aos índios e conseguiram aliados fiéis contra os portugueses.
Os pesquisadores se perguntam porque os índios, principalmente os potiguares que já conviviam a mais de uma geração com os portugueses, se aliaram de forma tão rápida e fiel aos holandeses. As respostas mais precisas parecem estar na liberdade e tolerância religiosa durante o período de Nassau, da qual se beneficiaram índios e judeus. Os janduís, tribos do interior, nunca haviam aderido aos portugueses que se estabeleceram no litoral. Entre os potiguares , há referências sobre descontentamentos com a colonização do Ceará e um pedido feito aos holandeses, através do aventureiro Johan Maxuel, para que atacassem o forte português.
Arredios ou descontentes com os portugueses, várias tribos tapuias aderiram ao governo holandês e os potiguares se dividiram. Parte ficou fiel aos portugueses, seguindo a liderança de Felipe Camarão, parte seguiu os chefes Pedro Poti e Antonio Paraupaba, índios educados na Holanda. A importância das tropas indígenas na guerra foi reconhecida por vários cronistas flamengos. O mais famoso deles, Barléu, diz: "De todos foram os Tapuias os mais dedicados a nós. Com o auxílio de suas armas e forças, comandadas por Janduís, pelejamos contra os portugueses".
A Companhia das Índias Ocidentais nunca descuidou do tratamento dispensados aos aliados indigenas. Além de levar vários jovens índios para Holanda, onde eram educados nas leis calvinistas e depois contratados como interpretes, nomeou representantes junto aos índios - Rabbí e Roulox Baro - e em 1645 promoveu uma assembléia em Tapisserica, com representantes de 17 aldeias, onde elegeram Antonio Paraupaba regedor do potiguares no Rio Grande, Pedro Poti, para a Paraiba, e Domingos Carapeba, para Pernambuco e Ceará. A preocupação do governo holandês era fazer os índios se sentirem iguais aos flamengos.
Conselho foi omisso e conivente
O papel do governo holandês estabelecido em Recife, nos episódios de Cunhaú e Uruaçu, nunca ficaram bastante esclarecidos. A conclusão dominante, tirada da leitura das crônicas, é que Supremo Conselho foi conivente com as ações na capitania do Rio Grande por não ter pulso firme suficiente em controlar a atuação de Jacob Rabbí e os grupos de índios liderados por Antonio Paraupaba.
São conhecidos alguns panfletos anônimos, que circularam entre a população holandesa, criticando essa falta de pulso e conivência. Um deles, sob o título Brasulsche Gelt-Sack (A Bolsa do Brasil) considera Jacob Rabbí um "vagabundo impudente", que mereceria mais a forca que um comando, e culpa o conselheiro Adriaen Van Ballestrate por não ter impedido o massacre de Uruaçu.
Algumas tentativas de deter Jáacob Rabbí chegaram a ser feitas. Após o ataque a Cunhau, em fins de julho, o Supremo Conselho enviou um destacamento, formado por uma companhia de infantaria, 20 fuzileiros e mais 50 homens, sob o comandado de um capitão e um pastor. A missão era recambiar Rabbi e os janduís, que ainda estavam em Cunhaú, para o Recife. Houve troca de tiros entre os dois grupos e a missão fracassou.
Apesar da aparente insubordinação, Rabbi não perdeu prestígio entre o comando do Castelo de Keulen nem junto ao conselheiro Ballestrate. Assim é que no dia 1º de outubro consegue peças de artilharia para vencer a resistência na paliçada do Potengi e, no dia 13, participa da reunião com Bellestrate, Paraupaba e o comando do Castelo de Keulen onde se decide deportar os sobreviventes para a Paraíba e desmantelar as cercas fortificadas que haviam na capitania do Rio Grande.
O perdão dado ao tenente-coronel Joris Garstman, após a emboscada para assassinar Rabbí, e que foi executada por dois mosqueteiros holandeses, apesar do motivo ter sido vingança pessoal, é uma mostra de que o Supremo Conselho não se importou muito em perder o inoportuno e incontrolável aliado.

O C a m i n h o até a B e a t i f i c a ç ã o
Provas de sacrifícios:
Congregação para as Causas dos Santos exigiu provas de que martírio foi em nome da fé cristã


ESTUDOS - Monsenhor Assis fez várias pesquisas no Brasil e na Europa, incluindo a reconstituição pictórica dos massacres, para apresentar pedido ao Vaticano.
Para receber o pedido de beatificação para as vítimas dos massacres de Cunhaú e Uruaçu, a Congregação para a Causa dos Santos (com sede no Vaticano) impôs três requisitos: que as mortes tenham sido de forma violenta, que os motivos tenham sido ódio à fé católica e que as vítimas tenham aceitos livremente o sacrifício. Um dos desafios do monsenhor Francisco de Assis Pereira, postula dor da causa da beatificação dos mártires, foi provar que essas circunstâncias fizeram parte do episódio de Cunháu e Uruaçu.
No caso de Cunhaú a violência foi caracterizada pelo fato do grupo de fiéis ter sido chacinado em um recinto fechado, dentro da capela, sem possibilidades de fuga. Além disso, o ataque foi de surpresa e a traição, desfechado de forma repentina por índios selvagens e soldados holandeses armados.
O cenário onde se deu o massacre, o interior da capela, prova o ódio a fé católica. Em uma situação de respeito à religião e a fé, a capela de Nossa Senhora das Candeias teria que ter sido considerada um lugar inviolável e sagrado. Na defesa da causa da beatificação, monsenhor Assis refutou a tese de que o massacre estaria ligado a interesses econômicos ou militares. Os holandeses não teriam motivos para se preocupar com os moradores de Cunhaú, como ameaça ao domínio da Companhia das Índias Ocidentais sobre o Rio Grande, uma vez que a comunidade era formada por pessoas calmas e dedicadas aos afazeres domésticos.
O terceiro elemento que comprova o martírio na capela Nossa Senhora das Candeias é a aceitação voluntária da morte. Os fiéis não reagiram de forma violenta e, mesmo depois, não houve vingança, concordando com o sacrifício da vida.
URUAÇU - No caso do massacre de Uruaçu, a morte violenta está explícita no momento em que as pessoas foram atacadas por 200 soldados bem armados. O frei português Manuel Calado, no livro O Valoroso Lucideno, considera como "incríveis " as atrocidades cometidas, como a degola, a deceparão de braços e pernas, a amputação de nariz, olhos, línguas e orelhas. A Mateus Moreira arrancaram o coração pelas costas.
O segundo critério para a declaração do martírio é morrer pela fé. Os historiadores mostram que as vitimas de Uruaçu morreram testemunhando a fé em Deus e na Igreja Católica. No caso específico de Mateus Moreira, que disse "louvado seja o Santíssimo Sacramento" na hora do sacrifício, não há dúvidas sobre o ato de fé. E, por morrerem felizes por Deus, eles aceitaram livremente o massacre. No caso de João Martins, ele chegou a dizer que o matassem logo porque estava invejando seus companheiros.
O processo de beatificação
Passo a passo o processo para beatificação dos mártires de Cunhaú e Uruaçu
Dia 28 de fevereiro de 1989 – Monsenhor Francisco de Assis Pereira é nomeado o Postulado da Causa.
7 de maio de 1989 – a Causa dos mártires é introduzida solenemente na Catedral Metropolitana de Natal.
20 de junho de 1993 – é constituída a comissão de peritos em História, composta por professor José Antônio Gonçalves de Mello, Olavo de Medeiros Filho, Jeanne Fonseca Nesse.
De 17 a 31 de maio de 1994 – reunião do Tribunal Arquidiocesano para a Causa dos Mártires do Rio Grande do Norte.
15 de junho de 1994 – o processo da Causa dos Mártires é entregue na Congregação das Causas dos Santos, no Vaticano.
28 de outubro de 1997 – reunião dos Consultores históricos, na sala dos Congressos da Congregação das Causas dos Santos. O parecer foi pela justeza das investigações históricas feitas pelo Postulado da Causa.
23 de junho de 1998 – A comissão de oito teólogos do Vaticano reconheceram por unanimidade que houve martírio.
5 de março de 2000 – Data marcada pelo Papa João Paulo II para beatificação dos 30 mártires de Uruaçu e Cunhaú.

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