domingo, 15 de junho de 2008

Pedagogia da vontade!















Virou rotina me perguntar que diabos faço por aqui. Para onde foi o prazer de viver o dia, de conversar com as pessoas, de acordar e dormir agradecida, de me revoltar com as injustiças, de querer mudar o mundo para melhor, de acreditar no outro e em Deus? Quando foi que tudo mudou? Quando foi mesmo que passei a contar os dias que faltam para a minha aposentadoria?
Não sei. Só sei que me encontro assim, fazendo tudo por fazer. Quando, tarde da noite, volto para casa, fico desconfiada achando que não fui eu quem pegou ônibus, planejou, atravessou ruas, fez reuniões, deu aulas. Passo a ser eu mesma quando saio de mim. Não vou conseguir fazer as mesmas coisas amanhã! E amanhã, lá vou eu fazendo as mesmas coisas, do mesmo jeito, sem tirar nem por.
O que muda de vez em quando? Uma simples pergunta: “Professora, quer lamber ou quer chupar?” Naquele momento, vejo o adolescente com as calças nos joelhos e a bunda de fora voltada para minha cara envelhecida e triste. Que pedagogia é capaz de reverter essa situação? O uso da palmatória? Uma denúncia ao Conselho Tutelar? Uma conversa com os pais que não existem? Pegar os livros e voltar chorando para casa? Tirar também a roupa e dá-lhe uma cantada como troco? Desistir dessa profissão?
Continuo a não fazer nada. Juro que se ganhasse na mega sena, arrumasse um trabalho de escritório ou um homem que me sustentasse, deixaria de ser professora. Não suporto mais contar moedas logo na primeira semana de pagamento e inventar que estou doente porque os vales transporte acabaram.
O que ando ensinando para a humanidade? Como levar um menor infrator a entender que esse mundo é mesmo assim, desigual? Que ele não pode sair por aí roubando veículos ou assaltando pessoas com a desculpa de que quer levar sua “boyzinha” para um “giro legal” como tão frequentemente fazem muitos meninos por aí, pelas baladas da zona sul. Que ele tem mais é que agradecer a Deus o fato de estar vivo pra lutar e conseguir através do seu esforço e que somente estudando ele vai conseguir. Mas nós dois sabemos que as coisas não acontecem dessa maneira.
Como ensinar a humanidade a ser realmente humana? Como dizê-la que não existe nada de comum no fato de presenciar muitas crianças descalças nos semáforos à meia noite? Como ensinar a humanidade a ser realmente humana quando essa humanidade que senta nas carteiras escolares e carrega livros cansou de sonhar? Seus sonhos só são alimentados à base de crack, cola, maconha ou álcool.
Não tem jeito não. É baboseira falar de sentimentos sem que se tenha uma cifra pelo meio. O respeito anda abraçado às etiquetas e marcas do mercado. As palavras têm cheiro de indiferença e individualismo: “Eu tenho, eu sou, eu posso”. Até livros célebres escreveram sobre o segredo de voltar-se para si. É sucesso de venda! E o diálogo, restrito ao orkut ou msn que engolem palavras, não diz nada: é bejim, xau xau, aunnnnn, add, xerim... O que é aquilo???
Aí vem a diretora, coordenadora e supervisora andando pelos corredores, olhando o relógio, batendo a sineta, cortando pontos, planejando nos quinze minutos de intervalo, porque a escola não pode parar, tem que ter aula todo dia, até aos sábados e quando os índices de evasão e repetência aparecem, a culpa é do professor. Ele não estimula o aluno a aprender, ele não segue Paulo Freire, Piaget, Freinet... ele não constrói o saber, ele ignora a realidade vivenciada pelos mais de cinquenta alunos das treze turmas que leciona.
Ora, qual é mesmo o nome daquele aluno que desceu às calças em sala de aula? Terá sido aquela atitude um ato de revelia contra a hipocrisia da escola, tão cheia de teorias, regras e disciplina, inserida num mundo onde seus valores e atitudes já não são tão fundamentais?
Nesse contexto de lamúrias, apatia e desilusões, alguém aponta um caminho, num construir constante de nobres procedimentos. Com um guarda-chuva gigante debaixo do braço e uma velha bolsa manchada de giz no outro, ele caminha todos os dias da parada da rodoviária até a escola.. Nunca deu sinal de cansaço, ficando um pouco mais na sala dos professores. Nem bem a sineta toca, lá vai o professor de matemática para a sala de aula. Os alunos costumam dizer que ele já entra como giz na mão. No vespertino, dá aula ao Ensino Médio, à noite às turmas da EJA. No intervalo entre os dois turnos se faz voluntário na preparação para o pró-cefet. Aos sábados promove aulões para aqueles que irão prestar vestibular. Quando surge algum concurso público ele prepara a comunidade para enfrentar o referido processo. Fica triste quando a frequência é mínima, mas não desiste e continua, mesmo quando surge um só interessado.
Na sua luta, ele percorre os sebos da cidade e compra livros, vai às escolas da rede privada e cursinhos e compra módulos mais atualizados.
Mas que matemática, ele ensina como persistir nessa missão. Com lágrimas nos olhos, disse-me como não desistir: “É preciso continuar acreditando. Esses meninos precisam desesperadamente da nossa ajuda. Há de existir nisso tudo pelo menos um exemplo de conquista para os demais. É preciso mostrar que é possível. Se a gente não faz, quem vai fazer? Aqueles que acham que a escola pública é um caso perdido? Minha família é essa daqui, meus filhos são esses meninos e meninas daqui”.
Foram essa palavras do professor Francisco que me fazem, ainda hoje, atravessar a linha do trem que me leva à escola do bairro Bom Pastor, todos os dias. Graças a ele, descobri o que ando fazendo por aqui.

Fátima Abrantes
Professora da Escola Estadual Jean Mermoz

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